O texto é um pouco longo, mas garanto-vos que vale a pena ler:
Para a minha estreia no espaço Memória deste portal desportivo decidi homenagear uma das mais heróicas formações da História do futebol, que disputou o seu primeiro jogo há precisamente 66 anos. Uma equipa da antiga União Soviética que, durante a ocupação alemã na II Guerra Mundial, venceu todos os jogos que disputou, sendo que apenas por uma vez a vitória foi alcançada pela margem mínima. Uma equipa constituída por 11 atletas capazes de, literalmente, deixar a vida em campo só para defenderem a dignidade do seu clube e de uma população oprimida. O seu nome era FC Start. E os jogadores que a compunham foram quase todos detidos e fuzilados pelos nazis, pouco depois da sua última vitória em campo.
A ocupação de Kiev
Tudo começou em Setembro de 1941, quando o exército alemão, quebrando o pacto de não agressão assinado dois anos antes por Hitler e Stalin, ocupou vários territórios soviéticos entre eles a cidade de Kiev. Duas consequências da guerra foram a fome e a proibição do futebol. Os jogadores, à semelhança da grande maioria da população, foram feitos prisioneiros ou tornaram-se vagabundos, sobrevivendo como podiam ao frio e à perseguição nazi. Entre eles, Nikolai Trusevich, antigo guarda-redes do Dínamo de Kiev e um dos melhores jogadores da Europa na sua posição. No entanto, num daqueles encontros fortuitos de que a História é pródiga, Trusevich foi abordado por Josef Kordik, um veterano da I Guerra Mundial, fanático pelo Dínamo de Kiev e que, devido à sua origem austríaca e ao facto de falar bem alemão, não era perseguido pelos nazis. Ao encontrar o seu ídolo doente e subnutrido, Kordik, que administrava uma das padarias responsáveis pelo abastecimento da cidade, tratou logo de contratá-lo como seu funcionário. E foi durante uma conversa com Trusevich que Kordik teve a ideia de procurar antigos jogadores que tivessem sobrevivido à ocupação.
A formação do Start
O objectivo de Kordik não era só o de salvar esses atletas da miséria e empregá-los na sua padaria. Aproveitando a série de pequenas concessões que os nazis faziam para dar um aspecto mais normal ao quotidiano da cidade, como a realização de alguns jogos futebol no antigo estádio do Dínamo de Kiev, Kordik tinha o sonho de formar uma equipa. Como a proibição do Dinamo se mantinha, convenceu os alemães a aceitarem a formação de um novo clube, alegando que o desporto seria benéfico para a própria produtividade da padaria. O que ele não revelou foi que o seu clube seria formado por antigos jogadores do Dínamo de Kiev, do Lokomotiv e de clubes rivais do campeonato russo. E foi assim que nasceu o FC Start. E foi assim que, aproveitando os contactos de Kordik, o clube começou a desafiar equipas de soldados inimigos e selecções formadas pelo III Reich.
As primeiras vitórias
O primeiro jogo do FC Start foi disputado a sete de Junho de 1942 contra o Rukh, equipa criada por Georgi Shvetsov, um ex-jogador do Lokomotiv Kiev. Shetsov era um nacionalista ucraniano que se opunha ao regime comunista e que se tornara aliado dos alemães após a invasão. Até então, os jogos disputados no antigo estádio do Dínamo, entretanto rebaptizado de Estádio Ucraniano, não conseguiam cativar o interesse da população local, e o motivo era simples: só os alemães e os seus aliados é que estavam autorizados a jogar. Esta era também a razão pela qual o Rukh era uma equipa incapaz de cair nas boas graças do povo. Shvetsov bem tinha tentado recrutar antigos ídolos do Dínamo e do Lokomotiv para as suas fileiras, mas nenhum dos funcionários da padaria de Kordik aceitou representar o lado dos invasores. Mesmo que isso tivesse significado uma melhoria significativa nas suas condições de vida.
Sem um equipamento adequado, os jogadores do Start apresentaram-se em campo para o seu primeiro jogo com calças cortadas, sapatos e camisas vermelhas que Trusevich encontrara nas ruínas de uma loja. O vermelho, para Trusevich, teria sempre de ser a cor da vitória contra os nazis. O único jogador do Start que tinha chuteiras apropriadas era Makar Goncharenko, que as conservara intactas durante a invasão, convicto de que nem a guerra o impediria de jogar futebol. Mesmo assim, e com seus jogadores em más condições físicas, uma vez que tinham passado a noite anterior a trabalhar na padaria, o Start goleou o Rukh por 7 a 2. Humilhado, Shvetsov fez com que os nazis proibissem o Start de entrar no Estádio Ucraniano, mas nem isso impediu a ascensão do clube. Kordik transferiu a sua equipa para o estádio de Zenit, no centro de Kiev, onde o Start se estreou a 21 de Junho com uma vitória por 6 a 2 contra uma equipa da guarnição húngara, que auxiliava os alemães na ocupação da União Soviética. Três dias depois foi a vez da guarnição romena sofrer 11 golos sem resposta.
Uma popularidade incómoda
No entanto, as coisas só começaram a tomar proporções verdadeiramente inquietantes para o lado dos invasores quando, no dia 17 de Julho, o Start despachou uma equipa do exército alemão, denominada PGS, por 6 a 0. A lenda do Start enquanto equipa imbatível estava lançada e a população de Kiev começou a comparacer em peso aos jogos. E nem o facto de a imprensa local, controlada pelos alemães, menosprezar ou mesmo ignorar as proezas do Start, travou o crescimento galopante da sua popularidade. As vitórias no futebol, tanto hoje como há 66 anos atrás, são a melhor forma de unir um povo, porque a energia, a coragem e a união que se manifestam em campo são transmitidas a quem a elas assiste. Aquilo que os alemães tinham planeado inicialmente como medida de pacificação ameaçava tornar-se num incentivo à revolta.
A 19 de Julho foi a vez da poderosa equipa húngara do MSG Wal falhar a nova missão encomendada pelos nazis para derrotar o Start. Mais uma goleada, desta vez por 5 a 1, a favor dos soviéticos, que voltaram a vencer a mesma equipa no jogo de desforra, uma semana mais tarde, por 3 a 2. Foi a única ocasião em que o Start derrotou um adversário pela diferença mínima. E nem mesmo o preço inflaccionado dos bilhetes, na tentativa de afastar o povo do estádio, impediu que uma multidão comparecesse e exultasse com a vitória dos seus ídolos.
O primeiro encontro com o Flakelf
A dimensão épica da última vitória contra o MSG Wal, com o guardião Trusevich a efectuar uma das suas melhores exibições e a segurar o resultado nos últimos minutos, enfureceu os nazis. Para eles, derrotar o Start dentro de campo estava a tornar-se uma questão de honra. Por isso, foi marcado para 6 de Agosto um jogo entre Start e o Flakelf, a melhor equipa alemã da época e aquela que era utilizada como instrumento de propaganda nazi. O resultado desse jogo? 5 a 1 para o Start. Nova humilhação para a ideologia da raça superior. De Berlim chegou uma ordem para acabar com a vida dos jogadores do Start, única forma possível de evitar novas derrotas alemãs em solo ucraniano. Mas os nazis que ocupavam Kiev não acataram a ordem, por acreditarem que se o fizesse estariam a perpetuar a derrota alemã e a eternizar a lenda do Start. O desporto, para os nazis, deveria ser o reflexo da sociedade. Já o tinha sido nos Jogos Olímpicos de 1936, organizados em Berlim com o propósito de vincar a superioridade da raça ariana. Para os altos comandos nazis em Kiev, a decisão de fuzilar os jogadores do Start teria de esperar até conseguirem uma vitória sobre essa equipa. Decisão marcada para 9 de Agosto, dia em que esperavam que o Flakelf conseguisse vingar a pesada derrota que lhe fora infligida apenas 3 dias antes."
Foi num clima de forte tensão que a partida teve lugar no estádio do Zenit, completamente lotado. Antes do início do jogo, um oficial das SS entrou no balneário do Start apresentando-se como o árbitro da partida e exigindo que os jogadores do clube fizessem a saudação nazi quando cumprimentassem os adversários. Já em campo, equipados com camisola vermelha e calções brancos, os soviéticos levantaram o braço mas, em vez de dizerem “Heil Hitler!”, levaram a mão ao peito e gritaram “Fizculthura”, uma expressão de incentivo à prática desportiva. A equipa alemã, a jogar de camisola branca e calções pretos, marcou o primeiro golo do encontro, aproveitando um momento em que Trusevich tentava recuperar de um pontapé que um adversário lhe dera na cabeça. Até ao fim da primeira parte, no entanto, o Start conseguiu dar a volta ao marcador, com um golo de Kuzmenko e dois de Goncharenko. Durante o descanso, os jogadores soviéticos voltaram a receber visitas de oficiais das SS no balneário e advertências quanto ao destino de cada um, caso insistissem em vencer a partida. Apesar de terem chegado a pensar não voltar para o segundo tempo, os jogadores do Start, ao ouvirem os gritos dos seus compatriotas presentes nas bancadas, decidiram regressar ao campo. E jogar para ganhar. Não só para ganhar, para dar um baile aos adversários o que, nas condições em que se encontravam, significava assinarem a sua sentença de morte. E assim foi. No final do jogo, quando ganhavam por 5 a 3, o avançado Klimenko apareceu isolado à frente do guarda-redes do Flakelf. Depois de fazer uma finta que sentou o alemão no relvado, Klimenko ficou com a baliza deserta à sua mercê mas, em vez de rematar para golo, virou-se para trás e pontapeou a bola para o meio campo. Um gesto de superioridade total em relação ao adversário e que, para o público presente, constituiu um momento único de libertação e um incentivo à resistência.
Depois desse encontro, o Start ainda jogou mais uma partida, a 16 de Agosto, com o Rukh. E voltou a golear o primeiro adversário com quem tinha jogado, desta vez por 8 a 0. Mas o destino dos seus jogadores já estava traçado. Este último jogo tinha servido apenas para fechar o ciclo da efémera e imortal existência da equipa. Depois desse jogo, a padaria onde os jogadores do Start trabalhavam foi invadida. O primeiro a morrer torturado em frente de todos eles foi Kordik. Os restantes foram enviados para o campo de concentração de Siretz. Quatro deles - Kuzmenko, Klimenko, Korotkykh e Trusevich - foram executados com tiros na nuca. O guarda-redes e capitão da equipa, Nokolai Trusevich, morreu vestido com a camisola vermelha do FC Start e, segundo relatos de testemunhas, gritou “o desporto vermelho nunca morrerá” antes de receber a bala. Os restantes jogadores foram torturados até à morte. Goncharenko e Sviridovsky, que não se encontravam na padaria naquele dia fatídico, foram os únicos que escaparam, conseguindo sobreviver, escondidos, até à libertação de Kiev, em Novembro de 1943.
Ainda hoje, os possuidores do bilhete do encontro em que o Start venceu o Flakelf por 5 a 3 têm direito a um lugar no estádio do Dínamo de Kiev. Na proximidade do mesmo existe um monumento que saúda e recorda as façanhas dos jogadores que fizeram do clube uma lenda - na Imagem de Destaque, os 2 sobreviventes do FC Start junto ao seu monumento.
terça-feira, 3 de fevereiro de 2009
FC Start
Etiquetas:
Merdas que me revoltam
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário